Tribunal Militar – A utilidade de uma jurisdição especializada


Maria Ignez Franco Santos*

Os alicerces da Justiça Militar no Estado do Rio Grande do Sul são sólidos, espelhados na mais antiga jurisdição brasileira, criada em 1º. de abril de 1808[1], ainda no período monárquico.

Desde cedo, dotou-se o Brasil de um Código Penal Militar, além de numerosa legislação esparsa sobre o tema, estabelecendo-se competência do foro especial para os militares, por força da Constituição de 1891.

Sabe-se que a Junta da Justiça Criminal, instituída na Capitania do Rio Grande de São Pedro pela Carta Régia de 19 de julho de 1816, não tinha jurisdição para apreciar crimes praticados por eclesiásticos e militares “por gozarem do privilégio de foro”.

Os oficiais e as praças, por crimes e delitos relativos ao serviço e disciplina militares, tinham a sua conduta apreciada por Conselho de Disciplina (1857), a critério do Presidente da Província, responsável pela livre nomeação daquele Conselho e da Junta Superior, da qual era o seu presidente. Posteriormente, com a extinção da Junta (1876), o Presidente da Província tornou-se a instância revisora das decisões de primeiro grau. Todavia, em 1893, o Tribunal de Justiça foi fixado como instância recursal das decisões do Conselho.

É certo que a Constituição da República silenciou sobre as forças policiais estaduais. Sem previsão expressa na Carta Magna, foram toleradas como remanescentes das corporações existentes no regime monárquico. Originados do antigo Corpo Policial (1837), depois Guarda Cívica, os integrantes da Corporação gaúcha (hoje Brigada Militar, desde 15/10/1892)) eram julgados por um simulacro de processo, sob influência das forças políticas do Estado.

Paulatinamente, as disposições foram alteradas, culminando com a nova organização da Justiça Militar no Estado, por meio do Decreto no. 2.347 A, de 28 de maio de 1918. Previu-se que a Justiça Militar seria administrada - a) Por um Conselho Militar; b) Por um Conselho de Apelação, órgão recursal.

Datam de 1920 dois marcos significativos: o Decreto no. 14.450, de 30 de outubro, mandando observar novo Código de Organização Judiciária e Processo Militar, e o Decreto no. 14.544, de 16 de dezembro, designando as sedes das Circunscrições de Justiça Militar em tempo de paz e estabelecendo a jurisdição dos respectivos auditores.

Em 1934, a Constituição Federal incluiu, entre os órgãos do Poder Judiciário, os juízes e tribunais militares. No RS, em 1940, tornou-se a Justiça Militar órgão autônomo, subordinada diretamente à Secretaria de Estado dos Negócios do Interior e Exterior[2]. Converteu-se o Conselho de Apelação em Corte de Apelação, atribuindo-se a seus membros as garantias de magistrados, tais como a vitaliciedade e irredutibilidade de vencimentos. Importante modificação surgiu em 1947, com a inclusão da Justiça Militar Estadual em separado na Constituição do Rio Grande do Sul: “A Justiça Militar do Estado, organizada com observância dos preceitos gerais da lei federal, terá como órgãos de primeira instância os Conselhos de Justiça e como órgão de segunda instância a Côrte de Apelação” (art. 116).

Breve resenha histórica mostra-se necessária, para assinalar a evolução da Justiça Militar de 2º. Grau do Estado do Rio Grande do Sul.

Presente nas 27 Unidades da Federação, a Justiça Militar é “uma imposição da natureza peculiar da disciplina e da vida militares, que não permitem sejam os militares julgados pelos tribunais comuns, segundo a lei comum. De fato, deles se exige mais que ao homem comum: a eles, em operação, se deve permitir o que não se concederia a nenhum civil”, consoante adverte o constitucionalista Manoel Gonçalves Ferreira Filho[3].

Fundamental para o aperfeiçoamento dos quadros de pessoal das polícias e dos corpos de bombeiros militares, a Justiça organiza-se também por meio de Tribunais de Justiça Militar nos Estados de Minas Gerais e São Paulo, além do Rio Grande do Sul.

A Constituição Federal em vigor, além de manter os Tribunais de Justiça Militares existentes, possibilitou a sua criação quando o contingente militar for superior a 20.000 integrantes. Ampliou a competência da Justiça Militar, pois além de processar e julgar os militares dos Estados, nos crimes militares definidos em lei, permitiu o julgamento e processamento das ações judiciais contra atos disciplinares militares[4], ressalvada a competência do júri quando a vítima for civil.   

Não se desconhecem as controvérsias que pairam sobre a utilidade dos Tribunais de Justiça Militares, ou da própria Justiça Militar. Há quem preconize a respectiva extinção.

Indaga-se sobre a oportunidade de manter jurisdição especializada em 2º. grau para o julgamento dos crimes militares. É certo justificar-se a existência da Corte em face de sua originalidade essencial, consistente na composição mista, integrada por juízes civis e militares (quatro juízes militares, um juiz de carreira e dois dentre membros do Ministério Público e dos Advogados). Matérias peculiares à vida militar como insubordinação, abandono de posto, deserção, desacato a superior, motim e outras, encontrarão seara capaz de melhor avaliar as especificidades próprias da atividade militar.

O Ministério Público tem assento na Corte, por meio de um Procurador de Justiça. Nos termos da Constituição Federal, incumbe-lhe a defesa da ordem jurídica, do regime democrático e dos interesses sociais e individuais indisponíveis, agindo como defensor dos princípios da hierarquia e da disciplina. Atua como agente ou órgão interveniente no desempenho de suas funções.

No Rio Grande do Sul, não pareceria a mais acertada eventual decisão de confiar o julgamento da matéria recursal ao Tribunal de Justiça Comum, a exemplo de algumas Unidades da Federação. O prejuízo aos jurisdicionados e à sociedade seria evidente. Mostra-se qualificada a jurisdição entregue a julgadores especializados, com a prática da caserna e dos conhecimentos técnicos próprios, familiarizados com os valores da hierarquia e da disciplina, das especificidades da vida militar. É enriquecedora a mistura da vivência da caserna com a experiência de magistrados civis.

No caso gaúcho, seguramente a extinção do Tribunal de Justiça Militar acarretaria aos jurisdicionados perda efetiva no que pertine à celeridade no andamento dos feitos, além de risco à segurança social. Importa assinalar que, em geral, os Tribunais de Justiça estão abarrotados, à beira do colapso, registrando-se que, somente no Rio Grande do Sul, 5,8 milhões de processos tramitaram na Justiça gaúcha em 2011[5], com indisputável prejuízo à presteza das decisões. Sem contar que, em 2º. Grau, 1.595.972 recursos foram submetidos à apreciação dos desembargadores, número que, em média, não permite pronto julgamento.

Nesse aspecto, é imperioso destacar a preocupação do Tribunal de Justiça Militar do Rio Grande do Sul com a fixação de prazo razoável para o julgamento dos recursos e das representações para perda do posto e da patente e da graduação das praças, sem prejuízo da necessária qualidade, tanto que estabeleceu o cumprimento da meta de os apreciar em até 120 dias, na esteira das recomendações do Conselho Nacional de Justiça.

O argumento da necessidade de reduzir custos para o Estado ou para o Poder Judiciário não deve servir de fundamento à extinção do Tribunal de Justiça Militar. Sabe-se que a economia decorrente dessa medida corresponderia a 1,42% do orçamento do Poder Judiciário e 0,07% da arrecadação do Estado[6], sem que haja estimativas dos custos sociais reais da extinção. Seguramente, graves prejuízos à segurança pública seriam verificados em decorrência da demora no julgamento das condutas dos servidores militares, em face da sensação de impunidade, no caso da competência deslocar-se ao Tribunal de Justiça Comum.

Lembrada por alguns, a injusta pecha do caráter corporativista da Justiça Militar dissipa-se quando são analisadas as decisões judiciais, feito o balanço do trabalho desenvolvido tanto em 1º. como no 2º. Grau. Dados da Corregedoria-Geral da Justiça Militar do Estado do Rio Grande do Sul[7] revelam que as sentenças absolutórias representam 65%, contra 35% condenatórias, figurando dentre os jurisdicionados tanto oficiais como praças. Não há espaço para encobrir abusos e desvios de conduta dos milicianos, promovendo-se maior controle da atividade policial.

Por isso, causa estranheza a recente recomendação do Conselho de Direitos Humanos da ONU ao Brasil, em 2012, no sentido de “abolir o sistema separado de Polícia Militar, aplicando-se medidas mais eficientes para reduzir a incidência de execuções extrajudiciais e violações de direitos humanos”. À evidência, a anotação tem origem em fatos estranhos ao Rio Grande do Sul, onde a Polícia Militar desempenha função exemplar de prestadora de serviço público, possuindo eficazes órgãos de controle e julgamento da atividade militar. Não apenas dispõe de instrumentos internos de fiscalização no caso de transgressões disciplinares, como estão sujeitos os seus membros ao julgamento no âmbito criminal, em ambos os graus de jurisdição (presente Tribunal de Justiça Militar), sem prejuízo da possibilidade do ajuizamento de ações cíveis contra atos disciplinares.

Seguramente, o cotejo dos dados estatísticos dos Estados da Federação onde não existem Tribunais de Justiça Militares, mas apenas Câmaras Especializadas do Tribunal de Justiça para o julgamento de crimes militares, com aqueles em que a atuação é efetiva e célere (Rio Grande do Sul, São Paulo e Minas Gerais), desnuda a importância de uma justiça especializada para apreciar os crimes militares praticados por policiais militares no exercício das suas funções.

Aliás, os reflexos da corrupção e da impunidade na seara militar foram muito bem retratados no filme “Tropa de Elite”, do cineasta brasileiro José Padilha, que estarreceu a sociedade brasileira. A película serve de exemplo da importância da justiça especializada, cuja presteza e qualificação não deixa florescer o crime e a impunidade na caserna. 

Deve-se manter vivo o Tribunal Militar no Rio Grande do Sul, não apenas por sua origem histórica, também porque a experiência revelou a utilidade de uma jurisdição especializada para julgar os crimes militares, em razão das especificidades da atividade, calcada na hierarquia e na disciplina, e na eficiência dos resultados. Sem contar que o Tribunal de Justiça Militar, por meio dos seus Julgados, acaba por fortalecer a centenária instituição da Brigada Militar/RS, mantendo-a em nível elevado de disciplina e moralidade, ao apurar desvios de conduta dos servidores militares, responsabilizando-os penalmente, e decidindo sobre a perda do posto e da patente dos oficiais e da graduação das praças. 

*Procuradora de Justiça junto ao Tribunal Militar do RS

 


 

Referências bibliográficas 

AXT, Gunter e FOGAÇA, Rosimeri (Orgs.). A Justiça Militar do Estado – Depoimentos Vol. II. Projeto Memória da Justiça Militar do Estado do Rio Grande do Sul, Organizações Nova Prova, 2006, Porto Alegre;

COSTA E SILVA, Riograndino da.  A Justiça Militar no Rio Grande do Sul, in O Poder Judiciário no Rio Grande do Sul – Livro Comemorativo do Centenário do Tribunal da Relação de Porto Alegre, Vol. II, Tribunal de Justiça do Estado, 1974, p. 48;

DIÁRIO DA JUSTIÇA, 7 de junho de 1958, p. 7851-54, Superior Tribunal Militar (Histórico da Justiça Militar);

DIÁRIO DA JUSTIÇA, 12 de fevereiro de 1959, p. 1823-24, Comemorações do 150º. Aniversário do Superior Tribunal Militar;

FERREIRA FILHO, Manoel Gonçalves. Curso de Direito Constitucional, Editora Saraiva, São Paulo, 1999, p. 325;

GARCIA, João Carlos Bona. Tribunal Militar do Estado do Rio Grande do Sul: 85 Anos, in Revista Direito Militar no. 41, maio/junho/2003, p. 17-18;

RIBEIRO, Aldo Ladeira e MARIANTE, Hélio Moro. Resumo Histórico da Justiça Militar no Estado, in O Poder Judiciário no Rio Grande do Sul – Livro Comemorativo do Centenário do Tribunal da Relação de Porto Alegre, Vol. II, Tribunal de Justiça do Estado, 1974, p. 61.      

SIMON DE SOUZA, Octavio Augusto. Justiça Militar – Uma Comparação entre os Sistemas Constitucionais Brasileiro e Norte-Americano, Juruá Editora, Curitiba, 2008, p.103;


Citações

[1] Alvará de D. João VI cria o Conselho Supremo Militar e da Justiça, origem do Superior Tribunal Militar, marco inicial da autonomia da Justiça militar brasileira.

[2] Lei no. 47, de 19/11/1940.

[3] FERREIRA FILHO. Manoel Gonçalves. Curso de Direito Constitucional, Editora Saraiva, 26ª. edição, São Paulo, 1999, p. 253;

[4] Emenda Constitucional no. 45, de 2004.

[5] Fonte: Tribunal de Justiça/RS.

[6] Fonte: Dados da Presidência do Tribunal de Justiça Militar do Estado do Rio Grande do Sul - 2012

[7] Fonte: www.tjmrs.jus.br

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