O Interrogatório e o Advogado no Processo Penal Militar


Artigo escrito pelo Dr. Luiz Augusto de Mello Pires, Advogado e Copresidente da Comissão Especial de Direito Militar junto à OAB/RS:

"O interrogatório, no âmbito do processo penal, ainda que as questões tormentosas que se debruçavam a respeito de sua forma estejam superadas, parece ainda merecer algumas breves considerações.

Como se sabe, debates infindáveis foram travados visando definir a natureza jurídica do interrogatório.

Na época em que editado o Código de Processo Penal, nos anos 1941, vigia plenamente o denominado Estado Policial, caracterizado pela ausência de limites formais à atuação das instituições de poder ou mesmo efetivo controle jurisdicional de seus atos. Por isto e, também, porque este Diploma processual, em seu artigo 186, estabelecia o direito ao silêncio fixando, no entanto, a possibilidade de prejuízo à defesa, é que o interrogatório academicamente restou definido como meio de prova.

Posteriormente, defendeu-se o conceito de que seria meio de defesa, pois o exercício do direito ao silêncio, aliado ao princípio do nemo tenetur se detegere, vedava que tal comportamento ensejasse quaisquer prejuízos ao acusado e à sua defesa. Consequentemente, então, o interrogatório não mais poderia ser considerado como meio de prova.

O conceito evoluiu e surgiu a ideia de que o interrogatório seria ato híbrido, uma vez que se trata de meio de prova destinado à formação da convicção do julgador, e, ainda, meio de defesa por se tratar do exercício de autodefesa.

Por fim, a última concepção é a de que o interrogatório há de ser entendido, primordialmente, como meio de defesa e, subsidiariamente, como meio de prova.

Não obstante o esforço acadêmico para definir a natureza jurídica do interrogatório, razão assiste ao Ilustre Professor Aury Lopes Jr. quando afirma que o debate é despiciendo, pois as definições meio de prova ou meio de defesa não são autofágicas. Antes disto, qualquer conceito sobre o interrogatório e seu conteúdo “ingressa na complexidade do conjunto de fatores psicológicos que norteiam o ‘sentire’ judicial materializado na sentença”[1].

Dito isto, oportuno enfatizar que a quaestio juris que realmente assume especial significado ao exame do interrogatório é a atuação efetiva do Advogado neste ato de extrema relevância ao processo penal.

Com efeito, o Código de Processo Penal e o Código de Processo Penal Militar remontam ao sistema processual inquisitório, pois editados nos anos de 1941 e 1969, respectivamente, cujo princípio básico era o de concentrar nas mãos dos Magistrados os poderes de acusar, defender e julgar. Naqueles tempos o réu posicionava-se no processo como mero objeto da persecução penal, porque acima de tudo preponderava a ideologia da defesa social, a qual haveria de ser defendida e instrumentalizada através da centralização do poder, de um poder sem limites e sem controles, a ser exercido pelo Poder Judiciário. Assim, à época e com raríssimas exceções, o que se percebia era mesmo verdadeira inquisição. Exemplo disto eram as disposições do artigo 187 do CPP ao dispor que O defensor do acusado não poderá intervir ou influir, de qualquer modo, nas perguntas e nas respostas”, assim como o artigo 303 do CPPM, que ainda hoje estabelece que “O interrogatório será feito, obrigatoriamente, pelo juiz, não sendo nele permitida a intervenção de qualquer outra pessoa”.

Ocorre, porém, que com o advento da Carta Política de 1988 o processo penal brasileiro adotou o sistema acusatório, alicerçado na defesa dos direitos fundamentais dos acusados em oposição à possibilidade de arbítrio no exercício do poder de punir, estabelecendo clara definição de funções no processo. Assim, o Magistrado integra Órgão imparcial e inerte, porque atua apenas quando provocado e apenas para aplicar a lei à situação fática; o autor, que será aquele que procede à acusação e assume todo o ônus da imputação; e o réu, a quem devem ser assegurados todos os meios e recursos inerentes a sua defesa.

Não pode ser outra a conclusão tomando-se por base a dicção do artigo 5º, incisos XXXV (tutela jurisdicional), LIV (devido processo legal), LXXIV (acesso à justiça), XXXVII e LIII (garantia do juiz natural), caput e I (tratamento paritário das partes), LV, LVI e LXII (ampla defesa e contraditório) e LVII (presunção da inocência), assim como do artigo 93, inciso IX, que trata da publicidade dos atos processuais e da motivação dos atos decisórios e, por fim, o artigo 400 do próprio CPP, que define o interrogatório como último ato de instrução, formato, aliás, adotado pelo CPPM por força de orientação do Supremo Tribunal Federal.

Diante deste novo contexto, como não poderia deixar de ser, o CPP adequou-se à nova ordem constitucional de modo a que, hoje, é plenamente possível a intervenção do Advogado no ato de interrogatório, como evidencia o seu artigo 188 ao determinar que Após proceder ao interrogatório, o juiz indagará das partes se restou algum fato para ser esclarecido, formulando as perguntas correspondentes se o entender pertinente e relevante”.

Como se constata, a participação ativa do Advogado no interrogatório do réu que o constituiu trata-se de prerrogativa processual claramente assegurada pelo processo, competindo ao Magistrado apenas e tão somente presidir sua atuação de modo a ordenar o ato para que não ocorra desvio de sua finalidade. Dito de outro modo: a ação do Advogado no interrogatório, desde que consubstanciada em perguntas relevantes sobre fatos pertinentes, não pode ser cerceada pelo Julgador, como adverte o Superior Tribunal de Justiça ao proclamar que O interrogatório, como ato de defesa do acusado e fonte de prova, submete-se ao princípio do contraditório, com direito de participação das partes no ato judicial”[2]. Frise-se que são vários os precedentes[3], inclusive no sentido de que o Advogado tem o direito de atuar ativamente até mesmo no interrogatório de eventuais corréus (REsp 1181015/SP, RHC 54650/RJ, HC 243126 / GO), o que significa dizer que se for tolhido tal exercício pelo Magistrado, absolutamente nulo estará o processo. Por fim, sobre o tema, não se pode olvidar a lição emanada do STF no sentido de que, Em sede de persecução penal, o interrogatório judicial - notadamente após o advento da Lei nº 10.792/2003 - qualifica-se como ato de defesa do réu, que, além de não ser obrigado a responder a qualquer indagação feita pelo magistrado processante, também não pode sofrer qualquer restrição em sua esfera jurídica em virtude do exercício, sempre legítimo, dessa especial prerrogativa”[4].

O Código de Processo Penal comum já foi alvo de atualização acerca do interrogatório, encontrando-se hoje plenamente perfilado à Carta Política. O Diploma processual penal militar não foi brindado com semelhante e indispensável modernização legislativa e, ao que se vê do absoluto desinteresse político, tal não ocorrerá em período breve de tempo.

Assim, seguem não recepcionadas pela Constituição Federal as disposições do artigo 303 do CPPM, tanto quanto aquela inserta no artigo 305 do mesmo Diploma legal, quando assevera que o silêncio do réu poderá ser interpretado em prejuízo da própria defesa.

Não obstante, se os Magistrados da Justiça Militar, acertadamente, abandonaram o preceito do prejuízo decorrente do silêncio, de modo a adequar o processo penal militar à Constituição Federal, por certo não incorrem em erro e nem submetem o processo à nulidade absoluta quando igualmente o fazem para permitir ao Advogado constituído o direito de participar do interrogatório de seu cliente - ou mesmo de corréu -, porque esta é a medida que traduz homenagem ao princípio do devido processo legal e ao exercício da ampla defesa e do contraditório."



[1] LOPES JR., Aury. Direito Processual e sua conformidade constitucional. Vol. I. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2007, p. 598.

[2] RHC 48354 / SP, Sexta Turma, Ministro Rogério Schietti Cruz, julgado em 09.12.14:

 “Após o advento da Lei n. 11.690/2008, que superou o sistema presidencialista na oitiva das testemunhas, nada impede que, por uma interpretação sistemática, o magistrado permita que as partes façam perguntas diretamente ao acusado. Contudo, o indeferimento da inquirição direta, por si só, não inquina de nulidade o interrogatório”.

 [3]AgRg no REsp 1458725 / PA:

"[...] não  divergem  doutrina e jurisprudência em atribuir ao interrogatório  inquestionável  caráter  de ato de defesa do acusado sendo  considerado,  inclusive,  fonte  de  prova,  daí  porque deve obedecer ao postulado do contraditório com a participação das partes envolvidas no processo".

 [4] HC 94.016/SP

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