CNJ 20 anos: juízes e juízas formam Justiça cada vez mais plural

fonte: CNJ
Um dos
maiores desafios do Judiciário nos últimos anos é espelhar a representação
demográfica da população brasileira na magistratura. Incentivada por políticas
aprovadas pelo Conselho Nacional de Justiça (CNJ) nos últimos 20 anos, a
pluralidade de experiências e perspectivas de mundo têm se ampliado entre
juízes e juízas. Essas mudanças têm o objetivo de garantir o acesso à Justiça a
toda a população, não apenas em termos de processos recebidos, mas também de
compreensão por aqueles e aquelas que têm o papel de fazer justiça.
A pluralidade na magistratura ainda não representa a variedade da formação social brasileira. Atualmente, segundo dados do Módulo de Pessoal e Estrutura Judiciária Mensal do Poder Judiciário (MPM), o Brasil tem 18.911 juízes e juízas. Desse total, mais da metade (59,53%) são homens e, em sua maioria, brancos. Até fevereiro de 2025, o Judiciário contava com mais de 7,4 mil magistradas e há um índice de 13,2% de negros e negras. Além disso, está registrada a presença de 38 pessoas na magistratura que se declaram indígenas.
Diversidade
de gênero
O aumento
de mulheres na magistratura, incluindo promoções na carreira e em cargos de
liderança, tem o incentivo da Resolução CNJ n. 525/2023, que estabeleceu
percentual de mulheres desembargadoras nos tribunais de 2.º grau. As cortes que
não alcançarem a proporção de 40% a 60% por gênero em cargos destinados a pessoas
oriundas da carreira da magistratura, a norma define listas exclusivas
compostas por mulheres para promoções por merecimento.
Promovida
à desembargadora em 2023, pouco antes da aprovação da medida, a magistrada Ana
Claudia Vianna, do Tribunal Regional do Trabalho da 15.ª Região (TRT-15), em
Campinas/SP, disse que muitos tribunais já indicavam mulheres nas promoções,
mas não necessariamente na mesma proporção. “É uma política positiva, que
mostra às mulheres que elas também têm o direito de chegar a esses postos”.
Na
carreira de magistrada desde 1993 e mãe de cinco filhos, a desembargadora
conhece as dificuldades que as mulheres têm para planejarem um crescimento
profissional. “No TRT-15, por exemplo, estamos preparando um levantamento para
entender a jornada feminina dentro da magistratura e, assim, podermos trabalhar
políticas que as contemplem”. A iniciativa quer entender, por exemplo, a
dificuldade que as juízas substitutas têm de se candidatar às vagas titulares.
“As mulheres estão sempre cuidando de alguém — um pai, uma mãe, os filhos, a
família — e isso pode ser um complicador para assumir uma outra comarca.”,
considerou.
Pluralidade
racial
Como
mulher negra que cresceu sob preconceitos em uma comunidade de Nilópolis, no
Rio de Janeiro, Leidejane Chieza tornou-se juíza em 2006, no tribunal de
justiça fluminense, onde já atuava como técnica judiciária desde 1994. “Sou uma
juíza negra dentro de um tribunal de pessoas brancas. Sinto que a população tem
dificuldade de se identificar com o Judiciário”, diz.
Juíza
Leidejane Chieza
Contudo,
a magistrada afirma que o Judiciário tem dado uma boa resposta à sociedade no
que se refere à questão racial. “Quando o Judiciário se posiciona, a sociedade
ouve, quer pela transformação cultural, quer pela punição”. Para ela, quando a
cultura muda, as questões de todos os grupos marginalizados se tornam visíveis.
No caso
do racismo, por exemplo, a juíza acredita que mais importante do que
conscientizar sobre o tema nas cortes, é ensinar sobre como ter posturas
antirracistas. Nesse sentido, a implantação do Protocolo de Julgamento com
Perspectiva Racial foi uma das maiores conquistas. “Quando se orienta o juiz a
como fazer, o resultado é colocar uma lente sobre as peculiaridades dessa
população em relação aos fatos” afirmou Leidejane Chieza, que também é a
gestora do Pacto Nacional da Magistratura pela Equidade Racial no Tribunal de
Justiça do Rio de Janeiro (TJRJ).
Justiça e sociedade
Quando
assumiu a Vara de Natividade (RJ), Leidejane percebeu que a mulher que ia ao
fórum como vítima de violência doméstica e o marido agressor eram os mesmos que
compareciam às audiências dos jovens infratores. “Ou seja, a família inteira
estava vivendo um ciclo de violência”. Pensando nisso, ela criou um projeto com
outros colegas para levar palestras e rodas de conversa com pais e filhos nas
escolas.
Um dos
resultados foi um maior número de denúncias de violência contra as mulheres,
não só porque elas passaram a entender seus direitos, mas por um reforço nos
trabalhos de conscientização dos homens e a redução a zero do número de
infrações cometidas por jovens e adolescentes. “Os juízes e juízas precisam
descer de seus castelos e conhecer a comunidade com quem eles trabalham. Sua
experiência de vida tem que fazer diferença e temos de ser modelos para essa
sociedade”, destacou.
A mesma
opinião tem o juiz Douglas Lima da Guia, responsável pela Vara Criminal de
Balsas, no Maranhão. Para ele, que ingressou no Judiciário há 10 anos, as
políticas estabelecidas pelo CNJ desde sua criação transformaram o papel da
magistratura. Sua função extrapolou os gabinetes e se tornou em um catalisador
para a implementação de ações, especialmente para os mais vulneráveis.
Exemplo
disso é o trabalho realizado na área da regularização fundiária. “Antes, o juiz
olhava apenas para aquele que tinha o direito de posse da terra. Hoje, mediamos
uma negociação entre as partes, com a participação das instituições
representativas da população e outros órgãos, como Incra, Funai e Instituto da
Terra”, explicou.
Juiz
Douglas Lima da Guia
Mesmo
quando é preciso fazer uma restituição de posse, isso é feito de forma
humanizada, considerando também a necessidade das famílias deslocadas. “A
atuação judicial não está apenas na sentença. Adequamos a decisão em
conformidade com a Constituição Federal, com os direitos humanos, com o
contraditório e a ampla defesa, além de privilegiar o acordo e a mediação”.
Ele
defende que magistrados e magistradas são agentes públicos que devem se
importar com a população a que servem. “Se o ar-condicionado de uma escola
estraga, não se espera mais que o Ministério Público vá até lá, entre com um
processo e só depois se intime a prefeitura”. A atribuição da magistratura é
reunir os responsáveis para estabelecer um plano de trabalho e definir a tarefa
de cada agente. “Garantimos, assim, que as crianças possam estudar com mais
conforto, sem precisar esperar por um processo judicial”.
Para
incutir esse entendimento, o juiz Douglas Lima reforça a importância de os
cursos nas Escolas de Magistratura incluírem questões sobre direitos humanos e
a atuação junto aos mais vulneráveis. “Ainda há resistência de alguns e algumas
em se envolver dessa maneira, mas as novas gerações da magistratura já chegam
formadas com esse novo contexto”, disse.
Novos
tempos
Juíza
Lorena Sales Araújo.
Preparando-se
para começarem a atuar na Justiça Federal, as juízas Lorena Sales Araújo
(TRF-4) e Luciane Benedita Duarte Pivetta (TRF-1) participam dos cursos de
formação de juízas e juízes federais substitutos de suas respectivas cortes.
Mesmo em regiões diferentes do país, ambas apontam mudanças na aplicação do
direito. Para elas, a influência dos direitos humanos, uso ético da inteligência
artificial, questões de gênero, direito da antidiscriminação, direitos das
pessoas com deficiência, direito ambiental, justiça restaurativa e soluções
consensuais delimitam uma nova forma de fazer a Justiça.
Juíza
Luciane Pivetta
Para
Lorena Araújo, o maior impacto da profissão em sua vida pessoal é o fato de se
tornar exemplo para sociedade. “Nosso comportamento influencia diretamente a
imagem do Judiciário como instituição. Nesse contexto, a questão da
representatividade feminina é muito importante para incutir na sociedade que a
mulher pode ocupar espaços de poder, chefia e direcionamento”, afirma.
Já para
Luciane Pivetta, o poder das decisões judiciais transforma vidas e promove a
Justiça. “Ser juíza federal é a realização de um sonho, que une o meu desejo de
servir à sociedade com a alegria de exercer uma carreira que me completa e me
desafia todos os dias”, diz.
As juízas
têm experiências distintas, mas convergem nas avaliações quanto a questões
similares, como a representatividade feminina. Para elas, ainda é preciso
refletir sobre garantias mais claras e efetivas, especialmente sobre a
compatibilização do exercício da magistratura com as particularidades da
maternidade, inclusive durante o curso de formação inicial.
Acessibilidade
e Inclusão
Em 1989,
quando o juiz Rilton Góes Ribeiro, da 17.ª Vara do Sistema dos Juizados
Especiais do Tribunal de Justiça da Bahia (TJBA), passou em seu concurso, não
havia uma política de ações afirmativas para garantir um espaço às pessoas com
deficiência no poder público. O juiz convive com as sequelas da poliomielite
desde a primeira infância. Para ele, as cotas e políticas afirmativas são
importantes porque permitem que essas pessoas possam participar da vida ativa
da sociedade. “A política de inclusão do Judiciário está sendo bem aplicada e
os problemas estão sendo resolvidos, mas não se resolvem de uma hora para a
outra”.
Rilton
Góes destaca que a arquitetura antiga dos prédios é uma das maiores
dificuldades para a inclusão, mas que soluções são adaptadas para garantir o
acesso à pessoa com deficiência. Além disso, o portal do TJBA na internet
atende os padrões internacionais de tecnologia e de inclusão, com acesso à voz,
libras, descrição e legenda. “Temos várias ferramentas que permitem que as
pessoas possam ter acesso aos conteúdos do site”, afirma.
Todas
essas medidas — das ações afirmativas às estruturas físicas e tecnológicas —
garantem os direitos das pessoas. “Não adianta ter só o direito, mas ele tem de
ser material, com a possibilidade de ajuizar uma ação, de estar presente em uma
audiência, de entrar em contato com o magistrado, com o promotor, com o
defensor e os servidores do tribunal”, defende o juiz. Para ele, sempre há
espaço para melhorar. “O benefício é fazer com que todas as pessoas, com ou sem
deficiência, tenham acesso ao Judiciário”, declara.
Saúde
Essa
mescla na formação da magistratura brasileira também resulta em um nível de
produtividade positivo, mas que desafia o aumento vertiginoso do número de
processos que chegam ao Judiciário. Segundo dados do Painel de Estatística do
CNJ, foram mais de 38 milhões de novos casos apenas em 2024, formando um acervo
de 80 milhões de processos pendentes de julgamento. Nesse cenário, o cuidado
com a saúde dos magistrados é uma questão importante para manter também a saúde
da justiça brasileira.
Desembargadora
Ana Cláudia Vianna
Os
tribunais têm incentivado campanhas voltadas à prevenção de doenças, exames
periódicos e acompanhamento, especialmente em casos de saúde mental. No TRT-15,
por exemplo, as telas de trabalho são bloqueadas depois de um determinado
tempo, obrigando a pausa nas atividades. A ação é seguida de orientações para
fechar os olhos, levantar-se e alongar-se. Depois, o usuário pode encerrar a
pausa.
Segundo a
desembargadora Ana Cláudia Vianna, que participou da Comissão de Saúde do
TRT-15 nos últimos dois anos, há uma preocupação da administração com o
isolamento dos magistrados, especialmente no interior. “Depois da pandemia,
vimos muitos casos de estresse, desgaste e outros problemas de saúde mental
sendo enfatizados pela nova estrutura de trabalho”, disse. Nesse contexto, as
resoluções do CNJ que envolvem a saúde não apenas incentivam mudanças de
hábitos e de cuidados, mas também fomentam uma discussão sobre essas questões.