Absolvição: “condenação não se pode fundar exclusivamente nos elementos informativos do inquérito policial.”
Nesta quarta-feira (4 de outubro) durante a sessão número 3290 do Tribunal de Justiça Militar/RS foi julgada a Apelação Criminal N.º 1824-12.2015.9.21.0000, tendo como relator o Juiz Amilcar Fagundes Freitas Macedo e como revisor o Juiz Antonio Carlos Maciel Rodrigues. O recurso foi acolhido por unanimidade.
Denúncia
O Ministério Público, por seu representante legal, em atuação junto à 1ª Auditoria de Porto Alegre/RS, ofereceu denúncia contra os policiais militares D.S. e J.B.S.G., dando-os como incursos nas sanções do artigo 303 do Código Penal Militar, devido à prática, em tese, de fato delituoso (CPM - Decreto Lei nº 1.001 de 21 de Outubro de 1969 Art. 303. Apropriar-se de dinheiro, valor ou qualquer outro bem móvel, público ou particular, de que tem a posse ou detenção, em razão do cargo ou comissão, ou desviá-lo em proveito próprio ou alheio: Pena - reclusão, de três a quinze anos). O fato gerador teria ocorrido no município de Canoas e se trataria de apropriação de uma máquina caça-níqueis, cuja posse tinham em razão do cargo de policiais militares.
Condenação em 1º Grau
Em abril de 2015, na sessão de julgamento, o Conselho Permanente de Justiça decidiu por maioria (4x1), julgar procedente a denúncia, para condenar os réus à pena mínima de 3 anos de reclusão, sem direitos ao sursis, na forma do art. 303 do CPM, podendo os réus apelarem em liberdade.
O voto do Relator
Entendeu o Juiz Relator que "condenação não se pode fundar exclusivamente nos elementos informativos do inquérito policial."
“[...] No tocante ao mérito dos apelos, infere-se do expediente em lume a precariedade e, sobretudo, a insegurança, acerca de elementos comprobatórios da autoria delitiva, razão pela qual não se sustenta o decreto fustigado. Vejamos.
Preliminarmente, insta salientar que o sistema processual penal brasileiro, inclusive o castrense, repulsa eventuais condenações judiciais lastreadas tão somente por elementos angariados na seara inquisitorial.
Neste diapasão, o artigo 155 do Código de Processo Penal comum e o artigo 297 do Código de Processo Penal Militar asseveram que o juízo deverá construir sua convicção pelas provas judiciais, afastando-se a possibilidade desta construção ocorrer por elementos advindos exclusivamente da fase investigativa . In litteris:
Avaliação de prova
Art. 297. O juiz formará convicção pela livre apreciação do conjunto das provas colhidas em juízo. Na consideração de cada prova, o juiz deverá confrontá-la com as demais, verificando se entre elas há compatibilidade e concordância. [grifei]
Art. 155. O juiz formará sua convicção pela livre apreciação da prova produzida em contraditório judicial, não podendo fundamentar sua decisão exclusivamente nos elementos informativos colhidos na investigação, ressalvadas as provas cautelares, não repetíveis e antecipadas. [grifei]
Malgrado estas normas, compulsando os autos, verifica-se a inexistência de prova judicial – isto é, colhida sob o crivo do contraditório e da ampla defesa – que aponte a autoria delitiva, a fim de ensejar um juízo condenatório, o qual, como bem articulou a defesa (fl. 362), ‘deve ser embasado em prova irrefutável, capaz de dar certeza a decisão, de vez que a dúvida sempre favorece o réu, como consagra a farta jurisprudência’.
Assim, não há falar em manutenção de decisão em liça, pois balizada, especificamente, por elementos colhidos no procedimento investigativo, os quais, como bem analisou a Procuradoria de Justiça, ‘podem influir na formação do livre convencimento do juiz, para a decisão da causa, quando complementam outro indícios e provas que passam pelo crivo do contraditório em juízo’; contudo, este cenário, definitivamente, não é o caso dos autos, uma vez que a prova judicial – a qual se consubstancia, tão somente, nos depoimentos dos réus, da vítima e de duas testemunhas – está longe de evidenciar a autoria delitiva. Vejamos.
1) Os réus, em seus interrogatórios (fls. 171-172 e 229), negaram a prática delitiva.
2) A vítima (fls. 09-10, 23 e 268-271), única que manteve contato com os milicianos, em momento algum reconheceu os réus. Pelo contrário. Na seara investigativa, a Autoridade Policial lhe apresentou, no dia 28.02.2011 (data muito próxima ao delito – 21.02.2011), fotos de todos os policiais que, no dia dos fatos, estavam de serviço, oportunidade em que reconheceu como infrator um policial diverso (Sd.), denegando, assim, a autoria para os réus.
Por conseguinte, solicitou-se à vítima nova execução de reconhecimento pessoal dos autores delitivos (fl. 143-v), a qual foi por ela negada (fls. 153-154).
Não obstante, em juízo, no dia 10.07.2014, a vítima afirmou que não tem condições de apontar a autoria delitiva.
3) Por seu turno, a testemunha L. F. B. (fls. 275-277), em juízo, ao ser questionado sobre a autoria delitiva, tão somente afirma que ‘tinha um mais gordinho e outro magrinho que usava óculos’.
4) Por cabo, a testemunha E. E. de S. (fls. 272-274), em juízo, não descreve sequer uma característica física dos autores delitivos. Outrossim, afirma que não reconheceu os policiais, tampouco os viu novamente; retratando-se, portanto, da sessão de reconhecimento (fl. 126) elaborada na seara inquisitorial. In verbis:
Ministério Público: O senhor reconheceu esses policiais, ou os viu depois?
Testemunha: Não. Não.
Ministério Público: O senhor chegou a falar no inquérito, fez algum reconhecimento pessoal dos policiais?
Testemunha: Eles mostraram lá algumas pessoas, umas fotos mas não dava pra reconhecer não dava não.
Destarte, resta inconteste a ausência de elementos judiciais comprobatórios da autoria do delito sub examine – o qual, diga-se de passagem, não ocorreu na clandestinidade, conforme menciona o decreto a quo (fl. 316), ao contrário, deu-se em frente à vítima e às testemunhas retro mencionadas, as quais, sendo assim, detinham inegável aptidão para elucidar a autoria delitiva.
Ademais, para não passar in albis, data venia ao entendimento da Procuradoria de Justiça, in casu, a retratação, em juízo, do reconhecimento pessoal (prova plenamente repetível em juízo, portanto, sujeita ao contraditório diferido), ojeriza, sem sombra de dúvidas, a comprovação da autoria delitiva. Isso, porque, não há nos autos, sequer uma prova produzida, com observância dos princípios constitucionais do contraditório e da ampla defesa, a personificar os agentes delitivos do factum descrito na exordial.
No que tange ao valor probatório das provas colhidas durante a fase investigativa, E. M. B. nos termos que infra seguem, coaduna ao expendido.
18. Valor Probatório
A doutrina discute acaloradamente acerca da possibilidade de que elementos probatórios colhidos durante o inquérito policial sejam utilizados como fundamento para a condenação do réu, em juízo. Isto, principalmente, em virtude do caráter inquisitivo desse procedimento preliminar, a que não se aplicam, em sua integralidade, as regras inerentes aos princípios do devido processo legal e do contraditório.
Parte da doutrina admite o valor probante do inquérito policial (p. ex., Magalhães Noronha), principalmente no que toca às provas periciais (expressivo número de autores), de difícil ou impossível repetição em juízo. Essas provas, segundo os argumentos dos autores que defendem sua aceitabilidade, estariam sujeitas a um contraditório diferido, uma vez que o réu, no curso do processo penal, terá oportunidade de examiná-las e impugná-las como se houvessem sido produzidas no curso do processo. Assim, há uma importante classificação das provas, quanto à possibilidade de se repetirem em juízo, em repetíveis e irrepetíveis. As primeiras, como o próprio nome indica, podem ser realizadas novamente sob a égide do princípio do contraditório em juízo (v.g., a confissão, O RECONHECIMENTO e a oitiva de testemunhas). Já as provas irrepetíveis são aquelas que não podem ser renovadas na fase processual, uma vez que possuem caráter definitivo (v.g., exame de lesões corporais, em que os vestígios desaparecerão).
No entanto, a maior parte da doutrina tende a negar a possibilidade de uma condenação lastreada tão somente em provas obtidas durante a investigação policial. Admitem, quando muito, que essas provas tenham natureza indiciária. Isso porque sua admissão como elemento de prova implicaria infringência ao princípio do contraditório, estatuído em sede constitucional.
Nesse sentido se tem posicionado a jurisprudência, ao admitir o valor probatório do inquérito apenas quando corrobora a prova produzida em juízo. A prova produzida durante o inquérito seria, assim, mero reforço indiciário, a reforçar o convencimento do julgador. [grifei]
Neste diapasão, o autor, ainda, explana, especificamente, acerca do valor probatório do reconhecimento.
Valor probatório do reconhecimento: O reconhecimento, como meio de prova, tem valor probatório variável. É certo que, se procedido exclusivamente em sede de inquérito policial, não será admissível como único elemento de prova. [...]. Dessa forma, o reconhecimento de pessoas ou coisas valerá como substrato para a condenação do acusado caso seja corroborado pelos demais elementos colhidos em instrução. [grifei]
Além do mais, com bem asseverou a defesa (fl. 335) ‘todos os elementos de informação colhidos no inquérito estão sujeitos ao contraditório e ampla defesa, fato que ocorre exclusivamente no processo, momento pertinente para que elementos anteriormente colhidos assumam a natureza jurídica de provas’.
Não obstante, a jurisprudência das cortes superiores é pacífica ao afirmar que o reconhecimento procedido na fase inquisitorial é elemento insuficiente para sustentar eventual decreto condenatório, mormente quando retratado em juízo, haja vista o caráter meramente informativo do inquérito policial.
1) PROCESSO PENAL. HABEAS CORPUS. FURTO QUALIFICADO. CONCURSO DE PESSOAS. DÚVIDA QUANDO DO RECONHECIMENTO DOS DENUNCIADOS PELA VÍTIMA EM JUÍZO. AUSÊNCIA DE OUTRAS PROVAS PRODUZIDAS COM OBSERVÂNCIA DOS PRINCÍPIOS CONSTITUCIONAIS DO CONTRADITÓRIO E DA AMPLA DEFESA. ABSOLVIÇÃO COMO ÚNICA SOLUÇÃO. ORDEM CONCEDIDA.
1. O fato de a vítima haver reconhecido os pacientes como autores do delito na fase inquisitorial não se mostra suficiente para sustentar o decreto condenatório, principalmente quando em Juízo o reconhecimento dos denunciados não se realizou com convicção, além de não ter sido produzida, ao longo da instrução criminal, qualquer outra prova que pudesse firmar a conduta delitiva denunciada e a eles atribuída.
2. O inquérito policial é procedimento meramente informativo, que não se submete ao crivo do contraditório e no qual não se garante aos indiciados o exercício da ampla defesa, razão pela qual impõe-se, na hipótese, a absolvição dos denunciados.
3. Ordem concedida para restabelecer a sentença absolutória.
(STJ. HC 39192/SP. Ministro ARNALDO ESTEVES LIMA. DJ 26/04/2005)
2) PROCESSO PENAL. HABEAS CORPUS. ROUBO QUALIFICADO. CO-AUTORIA. RECONHECIMENTO DO RÉU PELA VÍTIMA EM JUÍZO. DÚVIDA. ABSOLVIÇÃO.
I - Tendo em vista que o reconhecimento, em juízo, do réu pela vítima, prova fundamental para justificar a respectiva condenação, não se encontrou revestido de certeza, faz-se, imperioso, absolvê-lo sob o mesmo entendimento empregado para a absolvição dos demais co-réus, qual seja, a insuficiência de provas (CPP, art. 386, VI).
II - A tão-só circunstância de a vítima haver reconhecido o paciente como um dos autores da infração, em sede de inquérito policial, não se afigura suficiente para justificar a respectiva condenação, quando, em juízo, a mesma vítima não demonstrou convicção no reconhecimento do suposto autor do delito, assim como não restou produzido, ao longo da instrução criminal, qualquer outro elemento probatório que pudesse comprovar a conduta delitiva atribuída ao denunciado.
Ordem concedida.
(STJ. HC 23547/SP. Ministro FELIX FISCHER. DJ 24/06/2003)
3) PROVA. PRINCÍPIO CONSTITUCIONAL DO CONTRADITORIO. CONDENAÇÃO FUNDADA EXCLUSIVAMENTE NO INQUERITO. FALTA DE JUSTA CAUSA PARA A CONDENAÇÃO.
É corolário inevitável da garantia da contraditoriedade da instrução criminal que a condenação não se pode fundar exclusivamente nos elementos informativos do inquérito policial, sequer ratificados no curso do processo, sobretudo, quando as investigações policiais não lograram fornecer nem a prova material do crime e da autoria e tudo se baseia em provas orais, desmentidas em juízo.
(STF. HC 67917/RJ. Ministro SEPÚLVEDA PERTENCE. DJ 17/04/1990)
4) CRIMINAL. HC. ROUBO QUALIFICADO. PACIENTE ABSOLVIDO EM PRIMEIRO
GRAU. CONDENAÇÃO PELO TRIBUNAL A QUO EXCLUSIVAMENTE COM BASE EM RECONHECIMENTO FOTOGRÁFICO. IMPROPRIEDADE. ORDEM CONCEDIDA.
Hipótese em que o paciente, absolvido em primeiro grau de jurisdição, restou condenado pela prática de crime de roubo, em grau de apelação, com fundamento, exclusivamente, em reconhecimento fotográfico realizado no inquérito.
O reconhecimento fotográfico somente deve ser considerado como forma idônea de prova, quando acompanhada de outros elementos aptos a caracterizar a autoria do delito. Precedente da Turma. Habeas Corpus, que deve ser concedido para restabelecer a decisão monocrática, suficientemente fundamentada na insuficiência do reconhecimento fotográfico como única prova a autorizar a condenação.
Ordem concedida.
(STJ. HC 27893/SP. Ministro GILSON DIPP. DJ 07/10/2003)
5) I. Habeas corpus: cabimento: direito probatório. Não cabe o habeas corpus para solver controvérsia de fato dependente da ponderação de provas desencontradas; cabe, entretanto, para aferir a idoneidade jurídica ou não das provas onde se fundou a decisão condenatória.
II. Reconhecimento fotográfico e chamada de co-réu, retratada: inidoneidade para lastrear condenação. O reconhecimento fotográfico à base da exibição da testemunha da foto do suspeito é meio extremamente precário de informação, ao qual a jurisprudência só confere valor ancilar de um conjunto de provas juridicamente idôneas no mesmo sentido; não basta para tanto a chamada de co-réu colhida em investigações policiais e retratada em juízo.
(STF. HC 74368/MG. Ministro SEPÚLVEDA PERTENCE. DJ 01/07/1997)
6) PENAL. HABEAS CORPUS. ART. 157, § 2.°, I E II, C.C. ART. 70 DO CÓDIGO PENAL. (1) CONDENAÇÃO. APELAÇÃO JULGADA. WRIT SUBSTITUTIVO DE RECURSO ESPECIAL. INVIABILIDADE. VIA INADEQUADA. (2) RECONHECIMENTO DO ACUSADO FEITO NA FASE INQUISITORIAL POR MEIO DE FOTOGRAFIA E PESSOALMENTE. CONFIRMAÇÃO EM JUÍZO. POSSIBILIDADE. (3) AUSÊNCIA DE APREENSÃO DA ARMA DE FOGO UTILIZADA. IRRELEVÂNCIA. (4) WRIT NÃO CONHECIDO.
1. É imperiosa a necessidade de racionalização do emprego do habeas corpus, em prestígio ao âmbito de cognição da garantia constitucional, e, em louvor à lógica do sistema recursal. In casu, foi impetrada indevidamente a ordem como substitutiva de recurso especial.
2. Esta Corte sufragou entendimento "no sentido de que o reconhecimento fotográfico, como meio de prova, é plenamente apto para a identificação do réu e fixação da autoria delituosa, desde que corroborado por outros elementos idôneos de convicção" (HC 22.907/SP, Rel. Ministro FELIX FISCHER, QUINTA TURMA, DJ 04/08/2003), assim como na hipótese, em que o reconhecimento ocorreu por meio de fotografia e pessoalmente, tanto na fase inquisitiva como em juízo, sendo referendado por outros meios de prova produzidos em sede judicial, sob o crivo do contraditório e da ampla defesa. Esclareça-se que análise mais acurada do referido tema não prescinde do revolvimento material fático-probatório, o que se afigura inviável na via estreita do habeas corpus.
3. A Terceira Seção pacificou o entendimento no sentido da desnecessidade de apreensão e perícia da arma de fogo para que seja configurada a causa de aumento prevista no art. 157, § 2º, I, do Código Penal, desde que os demais elementos probatórios demonstrem sua utilização na prática do delito. Ressalva de entendimento da relatora.
4. Habeas corpus não conhecido.
(STJ. HC 262715/SP. Ministra MARIA THEREZA DE ASSIS MOURA. DJ 20/03/2014)
Assim, em consonância ao entendimento doutrinário e jurisprudencial, os quais zelam pela efetivação das garantias constitucionais, é de ser reformada a decisão em liça para absolver os réus, sob pena de testilha à axiologia constitucional.
ISSO POSTO, com fundamento no artigo 439, alínea e, do Código de Processo Penal Militar, dou provimento aos recursos defensivos para, reformando a sentença de primeiro grau, absolver os apelantes.”