A importância das Justiças Militares para o estado democrático de direito
Maria Elizabeth Guimarães Teixeira Rocha*
O questionamento sobre a permanência das Justiças Militares Federal e Estadual como ramo especializado do Poder Judiciário, de tempos em tempos, é alvo de questionamentos.
As razões podem ser sinteticamente resumidas em três grandes argumentos: estatísticas processuais reduzidas comparativamente aos demais Tribunais Superiores; custos elevados e incompatibilidade da permanência do foro militar em um Estado Democrático de Direito.
Sobre eles eu gostaria de aduzir as seguintes ponderações. Com relação ao primeiro, esclareço ser a Justiça Militar Federal uma jurisdição unicamente criminal, ou seja, ela julga tão somente os crimes militares contra as Forças Armadas e a Administração Militar, por isso as análises comparativas empreendidas com os demais Tribunais deveriam considerar apenas os processos criminais intentados naqueles foros, sem levar em conta matérias cíveis, administrativas, laborais, de direito do consumidor, dentre outras, muitas das quais com um padrão de decisão pré-definido. Saliento que Cortes penais não julgam em lista, que sustentações orais são corriqueiras e demandam tempo e serem os processos apreciados detidamente, folha por folha, caso a caso. Afinal, liberdade do indivíduo é inestimável!
Mas não é só. O universo dos jurisdicionados das Justiças Castrenses, na sua grande, maioria militares integrantes do Exército, Marinha, Aeronáutica, Polícias Estaduais e Corpo de Bombeiros são infinitamente menor frente aos 220 milhões de cidadãos brasileiros, sem mencionar os estrangeiros, que podem em tese, ser processados e julgados pela Justiça Penal Comum. Assim, em regimes políticos estáveis, os crimes militares devem ser, obrigatoriamente, inferiores aos da Justiça Ordinária, posto está-se a lidar com servidores públicos, submetidos à cadeia de comando, e não, com bandos armados ou milícias.
Por esta razão, a celeridade, direito fundamental erigido à canon constitucional pela emenda 45, é fator primordial nos julgamentos castrenses, em respeito ao réu que tem sua carreira suspensa enquanto estiver sub judice, e à hierarquia e disciplina, imprescindíveis para o controle de cidadãos armados. Temerário para a ordem democrática e para sociedade civil, vulnerável e desarmada, a inobservância de paradigmas rígidos de conduta nos quartéis, pois, quando as Forças militares se desorganizam, tornam-se impotentes para cumprirem sua missão constitucional de defender a Pátria, a sociedade, a lei e a ordem e os poderes constituídos, pondo em risco a soberania do Estado e a estabilidade política. Na verdade o binômio hierarquia-disciplina, tutelado pela Lei Maior, há de ser interpretado, nesta contemporaneidade com significado lato, a traduzir-se em segurança pública e segurança do Estado.
São valores singulares, por isso mesmo, salvaguardados pelo Constituinte primevo e pelo legislador como bens jurídicos a serem protegidos pela normatividade. Daí resulta a importância das Justiças castrenses, como justiças especializadas. Seu escopo é preservar a autoridade na vigilância e subordinação às ordens no interior da corporação, mormente em face do incremento dos crimes singulares, organizado e transnacional que, paulatinamente, adentram os quartéis, ameaçam as Forças Armadas e policiais e acuam a Nação.
Para além, a mobilidade, característica inerente à Justiça Castrense Federal, vislumbra-se imponderável em se tratando da Justiça Federal Comum. Inconcebível em situações de conflitos armados seu deslocamento para teatros de guerra, onde o poder sancionador se faz mais premente; a uma, porque o Comandante não pode praticá-lo de forma abusiva ou ilegal; a duas, porque não só os crimes, mas as infrações disciplinares cometidos em situação tão dramática determinam uma pronta, ativa e ágil estrutura judiciária com vistas a apurar os delitos e punir os culpados na maior brevidade possível.
Não se pode, portanto, valorar a relevância das instituições estatais, nomeadamente as que resguardam a eficiência da segurança social, em números ou mapas estatísticos. Eu rememoro a ocorrência dos grandes eventos que o Brasil será palco, como a Copa do Mundo e as Olimpíadas, bem como as eleições, a demandarem a efetiva participação das Forças Militares e, por consequência, a necessária interveniência da Justiça penal especializada para coibir eventuais delitos.
Quanto ao segundo argumento, concernente às despesas orçamentárias, esclareça-se que a Justiça Castrense Federal detém jurisdição em todo território nacional e custou ao Erário no ano de 2013, 0,020% do Orçamento Geral da União, aí incluídas as despesas de pessoal, diferentemente do Supremo Tribunal Federal ou do Superior Tribunal de Justiça cujo orçamento é menor por estarem localizadas na cidade de Brasília.
Em se tratando das Justiças Militares Estaduais eu gostaria de trazer à balha dados deste Egrégio Conselho Nacional que me afiguram de extrema relevância. O Tribunal de Justiça Militar do Estado de Minas Gerais dispendeu cerca de 40 milhões de reais no ano de 2012. Este valor abarca os subsídios dos magistrados de 1º e 2º graus, bem como os custos de bens e serviços adquiridos e recursos humanos. No tocante à produtividade, o Relatório Justiça em Números de 2013, indicou que foram julgados 3.163 processos.
Por seu turno, o Tribunal de Justiça Militar do Estado de São Paulo consumiu cerca de 45 milhões de reais, gastos com as despesas acima mencionadas, tendo julgado 2.800 feitos.
Noutra ponta, o Tribunal Regional Eleitoral do Tocantins, também um órgão especializado do Poder Judiciário, avaliado sob os mesmo parâmetros do TJM de Minas e São Paulo, percebeu em 2012 um valor em torno de 60 milhões de reais, tendo julgado 3.980 processos. Igualmente, no mesmo período, o Tribunal Eleitoral de Roraima custou aos cofres públicos pouco mais de 50 milhões de reais, ao passo que julgou 2.959 processos. Por sua vez, o Tribunal Eleitoral de Rondônia dispendeu mais de 61 milhões de reais e julgou 2.548 (duas mil quinhentos e quarenta e oito) ações.
Caso prevaleça o argumento da extinção de órgãos judicantes tendo em vista o binômio produtividade versus custos, certamente o Tribunal Regional Eleitoral do Distrito Federal estaria com os dias contados. O orçamento do ano de 2012 foi de R$ 74.559.418,00 tendo julgado 1.607 processos.
E eu iria mais além, levantamento realizado por um jornal de grande circulação nacional revelou aumentos progressivos nos gastos com diárias, passagens, auxílio-moradia e ajuda de custo do Conselho Nacional de Justiça. Segundo informou O Estado de São Paulo de 28/3/2013, só com o pagamento de mudanças houve um custo de R$ 1.000.000,00 em 2012. Por seu turno, auxílio-moradia gerou R$ 355.000,00 de despesas em 2008 e R$ 900.000,00 em 2012. Em quatro anos quintuplicaram os gastos com diárias (R$ 5.200.000,00 só em 2011). Passagens aéreas: R$ 901.000,00 em 2008, R$ 2.300.000,00 em 2012. Cada juiz convocado para o CNJ recebe ajuda de custo de até R$ 60.000,00. Em 2008 foram convocados 19 juízes. Em 2012, 36 juízes auxiliares receberam quase R$ 700.000,00 para o pagamento de aluguel. Com passagens aéreas dos juízes auxiliares (eles têm direito a cota de passagens para retornar para suas residências) foram consumidos R$ 2.558,00 em 2009 e R$ 151.000,00 reais em 2012. E eu indago, há duvidas sobre a importância do CNJ para a República e valer tal dispêndio de cada centavo gasto?
Recomendar a extinção das Justiças Militares Estaduais representa um retrocesso à Constituição autocrática de 1967, emendada em 1969, indo de encontro à Carta Cidadã que densificou o pacto federativo.
Por último, quanto à incompatibilidade das jurisdições castrenses com o Estado Democrático de Direito, relembro ter a Constituição de 1988, fruto de uma Assembleia Nacional Constituinte, democraticamente eleita, entendido pela necessidade da sua existência. No tocante às Justiças Estaduais, foram elas instituídas pelas Constituições dos estados-membros, todas promulgadas após 1988, inclusive, que em São Paulo foi realizada uma constituinte estadual e, portanto, estão longe de figurar como Justiças de Exceção.
A Justiça Militar da União, a mais antiga do Brasil, foi criada no Império, em 1808, por Alvará do então Príncipe Regente D. João, e não, pela Constituição de 1967/69 ou por um Ato Institucional espúrio, tendo sido integrada à estrutura do Poder Judiciário pela Carta liberal, legítima e democrática de 1934, fruto de uma Assembleia Nacional Constituinte.
Ao contrário dos demais países sul-americanos e dos Estados Unidos da América que extinguiram ou ainda preservam seus foros militares, foram eles ou permanecem sendo Tribunais Administrativos ou Cortes Marciais, e não justiças stricto sensu.
Aliás, as Justiças Militares são, basicamente, integradas ou operadas por civis, a saber; defensores públicos, promotores, procuradores e subprocuradores do Ministério Público Militar, juízes-auditores federais que totalizam 54, mais os 5 ministros do Superior Tribunal Militar e os 3 juízes dos TJs especializados, todos cidadãos civis.
Enfatizo, outrossim, que a Justiça Militar da União, como de resto as justiças estaduais, acatam os princípios projetados pelas Nações Unidas para as jurisdições militares no mundo. E eu exemplifico: foram instituídas pelas Constituições e regulamentadas por lei, integrando a estrutura do Poder Judiciário. Observam rigorosamente, em seus julgamentos, o devido processo legal, aliás, uma imposição da Lex Magna.
Em períodos de paz, bem como durante os conflitos armados, as normas e os Tratados Internacionais, em especial os de Direito Humanitário e a Convenção de Genebra sobre o tratamento dos prisioneiros de guerra são aplicados. Menores de 18 anos não são processados e julgados nesta Justiça especial em acatamento à Convenção Internacional dos Direitos Humanos e as regras de Beijing para a administração da Justiça da Infância, bem como por vedação expressa do Estatuto da Criança e do Adolescente.
O Código Penal Militar não exclui de responsabilização os crimes sobre os quais se invoca o dever de obediência legal quando resultem em violação a direitos humanos, prática de genocídio ou crimes contra a humanidade. Relembre-se ser o Brasil signatário do Tratado de Roma e prever a Constituição Federal no § 4º, do art. 5º, que o Estado se submete à jurisdição do Tribunal Penal Internacional e o que me parece muito importante, as Cortes castrenses jamais foram objeto de questionamentos na Corte Interamericana de Direitos Humanos que, aliás, não recomendam sua a extinção, mas sim, que não detenham eles competência para julgar violações de direito humanos, como desaparições forçadas.
Ainda, o habeas corpus e o mandado de segurança poderão ser impetrados na Jurisdição Militar e se, denegados, caberá recurso ao Supremo Tribunal Federal e aos Tribunais de Justiças Militares. Suas decisões são igualmente recorríveis ao STF quando versarem sobre matéria constitucional.
As audiências e os processos são públicos e as decisões judiciais fundamentadas – art. 93, IX CF; os magistrados e promotores são servidores públicos ingressos na carreira mediante concurso de provas e títulos. Em se tratando dos Ministros do STM são indicados pelo Presidente da República e aprovados pelo Senado Federal. Quanto aos juízes estaduais, respeitadas as peculiaridades das Cartas dos entes federados, são indicados, em regra, pelos governadores e Tribunais de Justiça.
As vítimas poderão denunciar os crimes contra elas perpetrados, tanto ao Comandante da Força quanto ao Ministério Público Militar, e serão representadas pelos promotores e subprocuradores do Parquet castrense, em ação penal pública incondicionada.
A pena de morte só é admitida em caso de guerra declarada e, a propósito de sua legislação, defasada em razão da inércia legislativa, foi constituída uma Comissão de Reforma dos Códigos Penal e Processual Penal Militar, que conta com a participação de várias instituições como a DPU, o MPM, as Justiças Estaduais, juristas e professores, com vista a atualizá-la e ajustá-la às necessidades funcionais das Forças militares e à sociedade cambiante.
O Código Penal já teve seu trabalho concluído e as alterações propostas serão encaminhadas ao Congresso Nacional para discussão e aprovação.
Mas, para expurgar de vez a ideia de uma justiça corporativa, eu invoco um estudo realizado pela Fundação Getúlio Vargas, de credibilidade acadêmica irretorquível, que contabilizou um elevado número de condenações: tanto das praças quanto dos oficiais.
Outrossim, é comum atribuir-lhes a pecha de tribunal de exceção, nada mais equivocado.
Atesta a historiografia brasileira a imparcialidade e isenção do Superior Tribunal Militar em decisões memoráveis, tal qual a prolatada pelo então Supremo Tribunal Militar, quando reformou sentença condenatória proferida contra João Mangabeira pelo Tribunal de Segurança Nacional do Estado Novo, concedendo-lhe a ordem de habeas corpus – HC nº. 8.417, de 21 de junho de 1937 - ou ainda, quando deferiu medida liminar em sede deste mesmo writ constitucional; primeira Corte a fazê-lo, servindo tal decisão de precedente para o Supremo Tribunal Federal. Igualmente, foi lá que se quebrou a incomunicabilidade dos presos políticos, proibidos de manter contato com seus advogados sob a égide da Lei de Segurança Nacional, foi lá onde se decidiu que a greve, mesmo quando declarada ilegal pelo Poder Executivo, se perseguisse objetivos de melhoria salarial não se traduziria em crime contra a segurança nacional, ou ainda, que a mera ofensa às autoridades constituídas, embora expressa em linguagem censurável, não configurava delito contra a segurança do Estado, resguardando dessa forma, a liberdade de imprensa e de expressão.
Mais, o STM foi a única Corte de Justiça do Brasil que subscreveu manifesto, em 19 de outubro de 1977, autografado por todos os Ministros, condenando as torturas e sevícias, corriqueiramente praticadas, em defesa da dignidade da pessoa humana. Um ato de coragem e destemor, diferentemente de todo o resto do Poder Judiciário que quedou silente.
As decisões mencionadas, dentre outras que poderiam ser citadas, conferiram incensuráveis desates sobre temas que constantemente se prestavam a interpretações dúbias no auge do recrudescimento do regime político então vigente. Uma jurisprudência dignificante que deixou significativo legado às gerações futuras e ao democratismo judicial. Por derradeiro, saliento que os defensores públicos federais quando atuaram pela primeira vez no Judiciário Pátrio, o fizeram no Superior Tribunal Militar.
Insofismável a constatação de que sendo a Justiça Militar uma justiça especializada, tal qual a do Trabalho e a Eleitoral, é quem detém a expertise para assegurar a incolumidade dos bens jurídicos tutelados pela Constituição e pela lei material, bem como para avaliar a legalidade do exercício do poder sancionatório na esfera administrativa.
Como eu disse, a celeridade do Judiciário Castrense é imperiosa para a preservação da hierarquia e da disciplina dentro dos quartéis. Justiça que tarda falha, a exemplo do julgamento pelo Tribunal do Júri 20 anos após o massacre do Carandiru - episódio que deu ensejo ao deslocamento do foro militar para o Tribunal do Júri dos crimes dolosos contra vida praticados por militar contra civil. Delitos prescreveram e acusados faleceram antes de serem julgados.
A impunidade é um sentimento que se alastra com rapidez. Lamentável, para dizer o mínimo, que na chacina de Eldorado dos Carajás/PA, dos 155 policiais militares indiciados, somente os comandantes foram condenados, iniciando o cumprimento das penas, ano passado.
Posso assegurar que, em ambos os casos, os resultados seriam diversos no foro militar estadual.
Estou segura que a questão da segurança do Estado hoje imbrica-se com a segurança pública. Operações de GLO implicam em auxílio ao policiamento preventivo e, até, repressivo. Está diante de realidade até então inexistente. O recrudescimento da violência no meio civil, sobretudo por intermédio do crime organizado, demanda a necessária intervenção do Exército, Marinha, Aeronáutica e Polícias Militares.
Mas elas precisam ser controladas. Por isso, a morosidade processual, no Direito Castrense, revela-se fatal para a integridade das Forças Armadas e auxiliares, instituições nacionais permanentes, como se extrai do comando magno. São elas as únicas que têm por finalidade a defesa da Pátria lato sensu, valor mais elevado do que a própria vida, posto que, em determinadas circunstâncias, impõem-se aos militares o dever de matar ou morrer. A tal valor especialíssimo, correspondem regras especialíssimas que devem ser rigorosamente acatadas, sob pena de comprometimento da estabilidade do regime político.
A indisciplina nas forças auxiliares presenciadas pela sociedade brasileira em passado recente, bem como o motim dos controladores de voo, são exemplos contundentes sobre a importância das Justiças Militares. As extensas zonas de fronteiras brasileiras e a imensidão amazônica impõe a presença das Forças Militares e, consequentemente, da Justiça Especializada.
Para tanto, imprescindível a ampliação da competência da Justiça Militar Federal para julgar as infrações disciplinares e matéria administrativa, para ambas, prevista no art. 142, § 3º, X, da Constituição Federal, à exceção das questões remuneratórias. Afinal, a expertise desta Justiça Especializada é fundamental para o deslinde, não somente, de lides penais, mas daquelas que versem sobre situações especiais dos militares. Para além, a ideia é trazer para o universo castrense, via alteração do art. 9º do CPM, as leis penais extravagantes, tal qual proposto pela Comissão de Reforma do Código, a fim de que possamos aplicá-las em nossas decisões.
Eu concluo afirmando que prestigiar os princípios da cidadania e da dignidade da pessoa humana e renovar a atuação judicial, constitui-se no decisivo contributo da Magistratura para a edificação da nacionalidade. A legitimidade da potestade pública, em todas as suas esferas, passa necessariamente pelos foros judiciais.
Nessa trajetória, a vivência e o conhecimento técnico das Justiças Militares, projetam a afirmação do Estado como ethos e o permanente comprometimento do Poder Judiciário com a construção da legitimidade democrática.
*Ministra Vice-Presidente do STM